Os 24 trabalhadores do Rio Grande do Norte que partiram rumo ao Ceará para atuar na construção civil tinham um objetivo em comum: ganhar um dinheiro a mais para melhorar de vida. Nunca esperavam que a realidade fosse tão oposta ao que havia sido prometido a eles. Tão oposta que não tinham outra alternativa: faziam suas necessidades fisiológicas no meio do mato, pois as casas onde dormiam, as mesmas que construíam, não tinham água encanada, energia ou banheiro. Para completar, o fornecimento de comida era irregular. Passavam fome.

A situação degradante na qual viviam foi considerada análoga a de escrava por quem fiscalizou a obra, localizada em Ibiapina, no Ceará, cidade a 300 quilômetros da capital Fortaleza. O caso, de 25 de setembro, é o mais novo de exploração de mão de obra escrava em empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida, programa de moradia do governo federal. Nos últimos anos,diversos flagrantes desse crime foram realizados em obras relacionadas ao projeto – só nos últimos três meses, aconteceramresgates em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, e em Embu das Artes, em São Paulo. Houve ocorrências, ainda, envolvendograndes empreiteiras, como Brookfield e Emccamp, e até um caso cujas vítimas eram imigrantes haitianos – que vieram aos milhares ao Brasil após o terremoto de 2010 que devastou o país caribenho.

jaci trab na viga

Tais violações trabalhistas, em conjunto com as ocorridas em obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e da Copa do Mundo de 2014, levantam importantes questões: por que tantos casos graves de desrespeito à dignidade dos trabalhadores da construção civil em obras financiadas com dinheiro público? Como evitar que isso aconteça?

Claudio da Silva Gomes, presidente da Confederação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores nas Indústrias da Construção e da Madeira filiados à CUT, tem uma explicação: “As empresas que pegam esses contratos com o governo, nos casos em que há licitação, oferecem a execução do serviço pelo menor custo possível. E normalmente isso está associado a uma exploração intensiva do trabalhador”.

opcao1 (2)

Obras do PAC

Quando se fala em obras incluídas no PAC, um destaque negativo é o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, em Rondônia, onde estão sendo construídas as usinas de Santo Antônio e Jirau, que receberam financiamento inicial – respectivamente, deR$ 6,1 bilhões e 7,2 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. Comandadas por grandes empreiteiras como Odebrecht e Camargo Corrêa, as construções foram palco de paralisações, revoltas, superexploração e até trabalho escravo.

Há outros casos do PAC que também foram caracterizados como trabalho análogo à escravidão, como o de uma obra de saneamento básico no Maranhão, o da duplicação da rodovia federal BR-060, no sudoeste de Goiás, que contou com R$ 1,4 bilhão dos cofres públicos, e o da construção de uma usina hidrelétrica também em Goiás, cujo aporte do BNDES foi de cerca de R$ 250 milhões.

“O que deveria acontecer é uma maior vigilância já na fase de assinatura dos contratos de empréstimos para entes privados”, defende o auditor fiscal do Trabalho Marcelo Campos, Coordenador do Projeto de Combate ao Trabalho Análogo ao de Escravo em Minas Gerais, do Ministério do Trabalho e Emprego. Renato Bignami, ex-coordenador estadual do programa de erradicação do trabalho escravo da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de São Paulo, lembra que, na prática, essa norma já existe, mas que não é respeitada pelo Brasil. É a Convenção 94 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo governo brasileiro em 1965, mas que nunca foi efetivamente implementada, segundo Bignami.

A convenção do organismo das Nações Unidas determina que cláusulas que garantam o cumprimento da legislação trabalhista constem de contratos entre poder público e empresas. Em 2011, a OIT chegou a cobrar o Brasil pelo não cumprimento da norma e destacou que havia chamado a atenção do país em algumas ocasiões sobre a falta de implementação das medidas.

bancoImagemFotoAudiencia_AP_282058

Combate sob censura

Se o Brasil peca no “antes”, em prevenir as violações trabalhistas, possuía um eficiente mecanismo para o “depois”, pelo menos no que se refere ao trabalho escravo: a “lista suja”. O cadastro reúne o nome dos empregadores flagrados utilizando mão de obra análoga à escravidão e era divulgado pelo então Ministério do Trabalho e Emprego, hoje Ministério do Trabalho e da Previdência Social. De atualização semestral, ele servia como referência para que empresas verificassem se seus parceiros econômicos haviam sido flagrados com mão de obra análoga à de escravos, possibilitando o gerenciamento de riscos.

No entanto, sua publicação foi suspensa justamente por lobby das construtoras. Em dezembro de 2014, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, concedeu liminar pedida pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) e barrou a divulgação do cadastro. “Foi uma decisão monocrática, precária. Suspendeu esse excelente sistema que não faz nada além de publicizar quem foi flagrado em situação ilícita e que teve amplo direito à defesa”, opina Marcos Fava, juiz do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. “É uma medida saneadora. Se eu pego dinheiro público, preciso ter minha cadeia produtiva saneada”.

Desde a proibição, a Repórter Brasil e o Instituto do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO) solicitaram e publicaram, em março e setembro, os nomes dos empregadores que utilizaram mão de obra escrava e que tiveram suas autuações confirmadas após defesa em primeira e segunda instâncias administrativas, com base na Lei de Acesso à Informação.

Deixe seu comentário aqui...